Resenha: A Bela e a Adormecida, de Neil Gaiman, ilustrado por Chris Riddell

22:21

    "Era o reino mais próximo ao da rainha, em linha reta, como voa o corvo, mas nem os corvos voavam até lá." *



    "[...] Às vezes desmoronados no chão. Às vezes em pé. Dormem nas oficinas, apoiados em sovelas, sentados em tamboretes de ordenha. Os animais adormeceram nos campos. Os pássaros também, e nós os vimos nas árvores ou mortos e espatifados nos campos onde despencaram do céu." **

    Escrito por Neil Gaiman e ilustrado por Chris Riddell, A Bela e a Adormecida (The Sleeper and the Spindle) traz um novo olhar à conhecida (até que ponto?) história da Bela Adormecida e uma Branca de Neve pós-caixão-de-vidro. Publicado pela primeira vez na Grã-Bretanha em 2014, a fantástica obra de Gaiman e Riddell chegou ao Brasil pela Rocco Jovens Leitores (selo da Editora Rocco para o segmento juvenil e young adult), em 2015. Alguns leitores brasileiros ficaram preocupados com a edição nacional porque acreditavam que ela não seguiria o mesmo padrão das editoras estrangeiras. Felizmente, não foi o que aconteceu. 
A capa dura é revestida por uma sobrecapa (jacket) de papel quase totalmente transparente que proporciona um efeito único. O leve embaçamento produzido pela sobrecapa se assemelha a um véu de teias de aranhas que buscam cobrir a bela adormecida, como no livro. As ilustrações são em preto e branco, com toques reais de dourado cintilante. 







O responsável pelas delicadas e magníficas ilustrações é o britânico Chris Riddell, que além de ilustrador é escritor e renomado cartunista político de alguns jornais como The Observer. Riddell recebeu diversos prêmios, como o Costa Children's Book Award e o Nestlé Gold Award, com destaque para a medalha Kate Greenaway, que premia ilustrações distintas em livros para crianças, com a qual foi laureado três vezes sendo uma pelo livro A Bela e a Adormecida. Para conhecer detalhes sobre o interessante prêmio conferido pelo Chartered Institute of Library and Information Professionals clique aqui
Chris escreve e ilustra seus próprios livros. No Brasil é mais conhecido pelas obras Otolina e a gata amarela, Otolina no mar, Otolina na escola, A Garota Gotic e o Fantasma de um rato e Wyrmeweald - O Tesouro dos Pródigos.  




Chris Riddell e sua visão pesadelo de uma presidência de Trump (pós Fuseli). Fonte: The Guardian.


O também britânico Neil Gaiman (conhecido e querido por este que vos escreve) é autor de SandmanCoraline, Deuses Americanos (American Gods), Os Filhos de Anansi (Anansi Boys), A Verdade é uma Caverna nas Montanhas Negras (The Truth is a Cave in the Black Mountains), etc. Você pode conferir a minha resenha sobre o primeiro livro de Coisas Frágeis, do Neil, aqui. Gaiman já foi laureado internacionalmente com prêmios como as medalhas Carnegie e Newbery, o prêmio Hugo (quatro vezes) e o Nebula (duas vezes), entre outros.



(Parênteses para avisar que li esse ano outro livro de contos de fadas do Neil, João e Maria, e pretendo escrever uma resenha aqui em breve. Aliás, O oceano no fim do caminho está aqui em casa na minha pilha de livros para serem lidos nas férias ;)

Neil Gaiman e Chris Riddell já haviam unido seus talentos antes nas edições britânicas de O Livro do Cemitério (The Graveyard Book), Coraline e Felizmente, o leite (Fortunately, the milk). A história de A Bela e a Adormecida apareceu primeiro no livro Rags & Bones: New Twists on Timeless Tales, uma coletânea de contos clássicos recontados sob a perspectiva do século XXI, publicado em 2013 pela Little Brown.

17310066



    O senhor de Sandman comenta em vídeos que a ideia surgiu quando seus amigos pediram que ele escrevesse uma história para a antologia que viria a ser Rags & Bones, pegando uma já existente e criando uma sequência ou virada ou mudança nela. Neil comenta que Branca de Neve foi provavelmente a primeira mulher que ele amou, quando tinha três anos de idade. Ele também amava a Bela Adormecida e pensou que poderia combinar as duas histórias.


A Bela e a Adormecida inicia acompanhando três anões que estão em busca de um presente para a rainha que irá se casar em uma semana. Ao atravessarem a cadeia montanhosa que divide os dois reinos, os anões descobrem que o outro lado da cordilheira está sob uma maldição, uma praga do sono que avança mais a cada dia. Ao retornarem com a notícia para a rainha de longos cabelos negros como as asas de um corvo e linda como uma rosa carmim sobre a neve caída, ela decide adiar seu casamento, pega sua cota de malha, sua espada, mantimentos e seu cavalo e sai para ajudar o reino dos adormecidos. Quem precisa de um príncipe? Certamente a rainha de Gaiman não, como ele afirma em entrevista ao The Telegraph: "'Você não precisa de príncipes para te salvar' [...]. 'Eu não tenho muita paciência para histórias em que mulheres são salvas por homens''. Afinal, mulheres não são seres frágeis que precisam ser defendidas por homens fortes e viris, ok? 





Uma jovem radiante como a aurora e delicada como uma rosa dorme junto com seu reino, guardada por uma selva de roseiras com espinhos mortais. Acredite quando afirmo que o conto de Neil Gaiman ainda assim irá te surpreender com sonâmbulos zumbis e princesas não tão boas como você imagina. 
Quanto às ilustrações, Chris Riddell informa que Neil não lhe deu nenhuma direção visual sobre como as personagens deveriam ser, permitindo que ele habitasse os espaços visuais vazios do livro, o que considerou "absolutamente atraente". Chris gostou da lista de personagens realmente intrigantes. Os que primeiro chamaram sua atenção foram os anões e sua relação com a mineração. Riddell não queria que eles tivessem a aparência tradicional, baseada no estilo Walt Disney. Um detalhe muito interessante que o próprio ilustrador comenta em um dos vídeos abaixo é o aparato iluminador dos chapéus dos anões, que serve como um capacete com lanterna usado hoje em dia. 




Após um ano no curso de Letras mudei minha opinião sobre diversos assuntos, temas e situações. Vejo, agora, os livros ilustrados e infantojuvenis de outra forma, menos preconceituosa. Muitas pessoas acreditam que por um livro conter mais ilustrações que palavras a sua leitura é menos digna de crédito. Não concordo mais com isso. Neil Gaiman diz que nunca pensou ou acreditou que uma ilustração em um livro diminuiria o valor da obra de alguma forma e lembra que até Dickens era ilustrado. 

Eu me encantei por A Bela e a Adormecida e recomendo a leitura tanto para crianças como para adultos, ou melhor, para jovens de todas as idades, como gosto de dizer. Não contei muito da história porque o livro é curto e para ir além eu teria que revelar alguns spoilers. As ricas ilustrações são sofisticadas, com certo tom de obscuridade e com um alto nível de detalhes que fazem com que você queria ficar minutos as observando, encantado e hipnotizado pelos traços mágicos de Riddell. A prosa de Gaiman não deixa nada a desejar, somente nos dá aquilo que queríamos com um algo mais surpreendente e que não nos decepciona, apenas nos faz sorrir e sussurrar após a surpresa: "Ah, isso é coisa do Neil". Nas palavras de Chris Riddell, "parte da mágica da colaboração é quando duas imaginações se unem fazendo coisas diferentes, mas criando algo extraordinário", que é o que acontece em A Bela e a Adormecida


Todos vão ficar fascinados com o livro.

Detalhando:


Na página 15, quando os anões estão discutindo com as pessoas da estalagem, encontramos um conflito de denominação referente à quem lançou a maldição do sono:

“- Uma bruxa! – disse o bebum.
- Uma fada má – corrigiu um homem de cara gorda.
- Pelo que ouvi dizer, ela era feiticeira – interveio a garçonete.”           

Nós comumente consideramos bruxa, fada má e feiticeira como sinônimos. Porém para o povo de A Bela e a Adormecida esses nomes representam alguma diferença. Conversando com uma bibliotecária muito querida minha eu já havia me deparado com essa questão. Ela me recomendou livros teóricos que serviriam de apoio para entender o que verifiquei novamente no conto de Neil. Quando ler algo mais profundo sobre isso volto aqui e atualizo a resenha.    



Fontes e para saber mais:

Leia um trecho de A Bela e a Adormecida (em português)! 
Entrevista de Neil para o The Telegraph: Neil Gaiman sobre o significado dos contos de fadas (em inglês). 
Galeria com o melhor de Chris Riddell, do The Guardian (em inglês).
Canal do Chris Riddell no YouTube onde você encontra vídeos lindos dele criando suas ilustrações. 
Canal do Neil Gaiman no YouTube onde você encontra ele recitando alguns poemas. 
Instagram do Chris Riddell que desenha todos os dias e faz questão de compartilhar seus sketchbooks. 
Instagram e Twitter do Neil Gaiman. 
Twitter do Chris Riddell. 





The Sleeper and the Spindle: Neil Gaiman and Chris Riddell on Chris's stunning illustrations:




The Sleeper and the Spindle: Neil Gaiman and Chris Riddell on collaboration:




The Sleeper and the Spindle: Chris Riddell discusses his illustrations:



Neverwhere: Neil Gaiman and Chris Riddell on illustration:


* (p.10) GAIMAN, Neil. A Bela e a Adormecida. 1a edição. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2015.
** (p.20) GAIMAN, Neil. A Bela e a Adormecida. 1a edição. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2015.

Não Derrame Café no Seu Livro, por João Augusto
Agradecimento especial à minha gata Molly. 


You Might Also Like

2 comentários

  1. Sou louca por esse livro! Doida pra comprar.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Eu peguei esse da biblioteca. Também quero muito comprar. A edição é linda!

      Excluir